Quando meus sobrinhos, Pedro e Carolina, começaram a aprender na escolinha o nome da rua onde moravam, eu protestava! Eu dizia a cada um, falando sério e olhando nos olhos: “Você mora no meu coração, no coração da sua tia!”. Até que um dia, minha irmã me ligou dizendo que começaram a dar trabalho para a professora quando o assunto era endereço.
Hoje sou eu que tenho que conviver com a pergunta. Aonde eu moro?
Há dias estou em trânsito para uma vida nova. É um longo processo até que eu possa ser assertiva em dizer onde eu moro. Uns chamam de coerência, outros de falta de juízo, mas eu bem sei o que estou buscando.
Graças ao Airbnb, escolhemos para nossa estadia inicial um lugar que a mim tocou muito: Vic Arts House. Me senti à vontade logo de início quando descobri que a arte não estava só no nome, mas no todo.
O lugar, além de hostel, serve como residência artística. A ideia foi realizada pelo jovem Hugo Branco, neto de um fármaco que, pelo jeito, curava o mundo mais com a arte do que com medicamentos. Certamente curava a si e à cidade, onde é possível, pelas ruas, encontrar painéis assinados por ele.
O homem que celebraria neste mês seu centenário, expressou-se muito além da alquimia: deixou seu legado na literatura, no cinema amador, na cerâmica e pintura. Ao ver algumas de suas obras intuo que algo nele pulsava mais rápido, livre e intenso que ao redor. Contemplo suas peças e nos autorelevos intuo uma alma transbordante. Vasco Branco é lua cheia.
Quero conhecer mais sobre ele, pois tudo ali me parece vivo: a mobília dos anos 50 não é só cool, mas deixa o passado contar-se ao presente. Há algo vivo na casa antiga, um frescor contemporâneo, o calor de uma história de amor e uma pergunta sobre os desfechos da vida. Cozinho entre adoráveis desconhecidos das mais diferentes nacionalidades. Tudo bem, nem todos adoráveis, mas com alguns deles eu poderia seguir viagem.
A casa é limpa. Impecável seria mentira, mas quase. A internet é instável, mas a conexão com as pessoas é boa. Pouco depois do meio-dia surge a trupe!
De vassoura e esfregão em mãos, ouvindo de jazz a música pop, limpam com ginga e bom humor, transformando a tarefa em evento.
Com essa mania de petiscar a biografia alheia, quero saber quem são, de onde vêm, em que ponto de suas histórias se conectaram ali, ao redor de VIC (assim V.B. assinava suas obras). Algo neles me rejuvenesce.
Um dia esqueci a chave e tive que tocar a campainha. Pela porta de vidro vi Sam, “fixe”, descendo as escadas dançando – ele tinha acabado de aprender os passos de Thriller, mas não tinha nada de zumbi. Eu tive que me segurar para não dançar do lado de fora... Marco, quando o vi pela primeira vez, passava o aspirador de pó usando óculos escuros e achei o máximo. Tem a Ana de cabelos longos, de espírito ativista, que carinhosamente nos acolheu sem fazer cara feia para nós, nossas muitas malas e nem por termos chegado antes do combinado. Tem Ricardo, um anjo-da-guarda, o mais jovem, que nos ajudou a subir as malas pelas escadas. Não sei o que busca na vida, mas sei que chama a motocicleta de my best friend. Lili, linda e clown, das artes cênicas, traz um senso de ordem para a casa, um centro. Tereza pinta os olhos de mistério e tem sempre um abraço bom. Hugo tem os olhos pacíficos.
No prédio-casa de três andares, cada quarto tem um tema que dialoga com a biografia de Vasco Branco: Cinema, Pintura, Cerâmica, Literatura, Projeto, Alquimia, Música e Sketch. Na cave, há uma biblioteca (que serve também de estúdio a Hugo que compõe músicas eletrônicas) e um auditório que na época servia não só para passar filmes, mas também como lugar de encontro dos artistas em tempos da ditadura portuguesa.
Por sorte, hoje todos entram e saem livremente para ouvir e expressar a si e ao mundo. Por sorte, enquanto espero meu endereço tornar-se habitável, estou aqui hospedada com meu amado, rumo a viver nossa biografia como uma obra de arte.
ความคิดเห็น